Cultivando a memória: Acampamento Pedagógico da Juventude e depoimento de sobrevivente mostram como violência no campo segue após quase 30 anos
Fonte: MST / Carlinhos Luz (Reprodução)
Crédito da foto de destaque: Carlinhos Luz
O dia 17 de abril de 1996, ficará para sempre marcado na memória das famílias do MST como um dia de luto e de luta mundialmente conhecido, devido ao Massacre de Eldorado do Carajás, na região Sul do Pará. O episódio foi um dos crimes mais violento do Estado brasileiro contra as famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais, que segue impune, mas que todos os anos é lembrado por diversos movimentos sociais e entidades.
Neste dia, na Curva do S, em Eldorado do Carajás, cerca de 15 trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra bloquearam a estrada PA-150, no km 95, em protesto por transporte e alimentação com o objetivo de marchar até Belém, capital do estado, e exigir a desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por 3,5 famílias Sem Terra desde 1995.
Mas, cerca de 155 policiais militares, com autorização do governo do estado na época, Almir Gabriel (PSDB), atacaram os trabalhadores/as Sem Terra durante a manifestação, resultando no assassinato de 21 trabalhadores rurais ligados ao MST, que participavam do protesto. No local faleceram 19 deles e outros dois vieram a óbito no hospital.
Após o Massacre, a Via Campesina relembra a data do 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa, em memória aos mártires de Eldorado do Carajás que defendiam o direito à terra e à vida e que foram covardemente assassinados pelo Estado brasileiro. Todos os anos, na semana do 17 de abril o MST também realiza a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, que este ano tem como lema: “Ocupar, para o Brasil alimentar!”, e acontece até o final do mês.
Maria Zelzuita Oliveira de Araújo, 59 anos, sobreviveu ao Massacre e hoje mora no assentamento 17 de Abril, no município de Eldorado do Carajás. Ela relembra as sequelas do crime e conta como a vida de sua família mudou após a conquista da terra.
“O Massacre trouxe, primeiramente tristeza e raiva, indignação por perder tantas pessoas. Mas também conquistei a minha terra, minha casa, meu emprego, criei minha família. Antes de conhecer o MST, eu não tinha nada, vivia empregada na casa de família, era cozinheira de restaurante. Depois que eu conheci o MST, melhorou minha vida. Eu e dos 690 moradores, que moram aqui no assentamento 17 de Abril”, resume. Confira o depoimento completo abaixo.
Violência e impunidade no campo continuam
De lá para cá pouca coisa mudou no cenário da violência no campo brasileiro. Segundo o Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no primeiro semestre de 2023 aconteceram 973 conflitos no campo, sendo a maioria por terra (791), resultando em um aumento de 8%, se comparado ao mesmo período de 2022.
Ainda segundo o relatório, a população que mais sofreu com a violência foram os indígenas (38,2%), seguidos pelos trabalhadores rurais sem-terra (19,2%), posseiros (14,1%), quilombolas (12,2%) e assentados (5,5%).
O Massacre de Eldorado do Carajás completa 28 anos de impunidade este ano, e ainda continua sendo uma ferida aberta no país e em especial no estado do Pará, que tem indicadores absurdos de violência contra os camponeses e camponesas. Estado em que o agronegócio ainda continua usando a violência como principal instrumento de repressão à luta pela Reforma Agrária, é o que afirma Jorge Neri, da direção estadual do MST no Pará.
Segundo ele, as famílias do MST aprenderam muito no processo de luta pela Reforma Agrária com o enfrentamento da violência e, em especial o Massacre de Eldorado dos Carajás. “O Massacre trouxe para nós a ideia de não subestimar a capacidade do Estado em nos reprimir e nos violentar, mas também de melhor organizar o processo de luta de massas”, explica.
O dirigente também relata que o assentamento 17 de Abril é marcado por traumas que até hoje não foram superados em consequência do Massacre e aponta a necessidade de reparação às famílias por parte do Estado brasileiro. “Temos uma comunidade muito marcada ainda pelo aspecto da violência e precisamos exigir que o Estado brasileiro faça uma reparação histórica psicossocial e econômica aos sobreviventes do Massacre, que até hoje sofrem com as consequências deste infeliz acontecimento e continuam exigindo o fim da violência e da impunidade no campo”, sentencia Neri.
Acampamento Pedagógico da Juventude Sem Terra “Oziel Alves”
Uma das simbologias que relembram a memória dos mártires de Eldorado do Carajás e reafirma o compromisso do MST em continuar a luta pela terra é a realização do Acampamento Pedagógico da Juventude Sem Terra “Oziel Alves”, instalado na Curva do S quase todos os anos, na semana que marca a data do Massacre.
Na sua 18º edição, este ano o Acampamento acontece de 10 a 17 de abril, com a participação de jovens dos estados do Pará, Maranhão, Tocantins e Roraima. As atividades previstas para ocorreu nesse período, envolvem processos internos e organizativos do MST, funcionando como espaço de formação, luta e memória, com o debate de temas sobre a conjuntura agrária e política e os problemas da juventude do campo.
Neri ressalta que o MST tem feito um esforço em manter viva na memória nacional o episódio do Massacre e por isso realiza, desde 2006, o Acampamento Pedagógico da Juventude, que todo ano traz reflexões sobre o que significou essa violência contra as famílias Sem Terra e reafirma a importância luta pela terra na região e no país, para construir um modelo de sociedade, baseado no direito à terra, à vida e na produção de alimentos saudáveis.
Sem Reforma Agrária não há democracia e, sem democracia é impossível construir uma sociedade que consiga dar conta das demandas históricas da classe trabalhadora. O mês de abril traz outra reflexão importante que é a necessidade urgente da retomada da luta em massa pela Reforma Agrária Popular, como condição de um projeto popular para o Brasil, em contraponto ao atual modelo econômico que tem excluído cada vez mais grande parte da população brasileira”, finaliza Neri.
Depoimento: “O MST dá vida às pessoas que não têm nada”
Após 28 anos, confira o depoimento completo da assentada, mulher, mãe solo e sobrevivente do Massacre de Eldorado do Carajás:
“O Massacre trouxe o seguinte: primeiramente tristeza e raiva, indignação por nós perder tantas pessoas.
Mas também conquistei a minha terra, minha casa, meu emprego, criei minha família. Só eu e Deus, mãe solo. Criei minha família. Hoje meus filhos, minhas filhas tem um estudo.
Para mim assim, que mora aqui no assentamento, que somos assentados, conquistamos nossas terras, nossa casa. Deu uma melhorada de vida pra gente.(…) Antes de eu conhecer o MST, eu não tinha um barraco para ir morar, para botar meus filhos de baixo, não tinha nada. Vivia empregada na casa de família, era cozinheira de restaurante.
Hoje não. Depois que eu conheci o MST, melhorou minha vida, conquistei minha terra, minha casa, meu emprego. Tenho minha família. Eu e os 690 moradores que moram aqui no assentamento 17 de Abril.Fui para o acampamento no dia 5 de novembro de 1995. Foi quando eu conheci o MST.
Continuo no MST, trabalhando, contribuindo. Sou coordenadora estadual, faço o que tiver ao meu alcance. Eu sou muito grata a Deus, primeiramente, segundo ao MST. O MST dá vida às pessoas que não têm nada. Não é fácil, mas é a luta. Uma luta que tem conquista.”
*Editado por Solange Engelmann